sábado, 24 de maio de 2014

O estranho mundo de alguns homens

"O grande perigo, neste momento difícil e sem chá que atravessamos, é a proliferação de uma nova categoria de sem-categorias, já imortalizada na tela por Eduardo Batarda, um dos poucos bons pintores portugueses que têm chá. Quem são? São os grunhos. Nem é caso para dizer: «Vêm aí os Grunhos!», porque o aviso seria em vão. Em boa verdade, os grunhos já cá estão.
O que é um grunho? É uma criatura que logrou escapar ilesa do choque civilizacional. Em termos darwinianos dir-se-ia que, em tempos de crise de chá, a selecção natural favorece o afloramento explosivo dos velhos genes recessivos bárbaros. Um gruno é um bárbaro, adequado à selvajaria contemporânea. Entre os leitõezinhos da Bairrada, irrompe hoje o grunho como se fora um javali.
Não se pode sair de casa sem deparar com um. Nas cidades de Portugal, grassam grunhos às manadas e matilhas. Longe vão os tempos em que se restringiam às matinées do Politeama. Há muito que invadiram os próprios palácios da alta cultura. Hirsutos e rotundos, loquazes e extremamente afectuosos, os grunhos são o pessoal da almoçarada e do «estás-mesmo-bom?».
Para quem tem chá, são a definição axiomática do gajo. Para que não tem, são para além de gajos, porreiros. Quando alguém diz que alguém é um gajo porreiro, devia acender-se no tablier mental de qualquer indivíduo avisado, em grandes letras luminosas: «ACHTUNG! GRUNHO"». Outras descrições perigosas são: «Tens de conhecer o Messias - é o sal da terra» ou «É um diamante em bruto» ou «É um bocado tosco, mas é uma jóia».
Os grunhos estão sempre bem dispostos e nunca sofrem, porque faz parte da ontologia do gruno não ter vida interior. Num restaurante de Lisboa, poucos dias depois do acidente de Chernobyl, ouvia-se um grunho a perguntar ao criado, enquanto abafava grossas gargalhadas: «Ouça lá - este cherne é fresco ou é "óbil"?. Veja lá - é que no outro dia serviram-me umas lulas tão radioactivas que bastava mexer-lhes nas patas para apanhar o FM da Renascença!».
São os grunhos que inventam as «últimas anedotas» que se supõem irrefutável do génio humorístico português. As anedotas são as maneiras deles se sentirem superiores a alguém. Depois de as contarem, explicam-nas até à exaustão («Cherne é óbil, Chernobyl, estás a ver? Foi aquele sítio lá na Rússia onde rebentou uma bomba nuclear, ou lá o que é»). Passada uma semana, contam-nas novamente.
Que mais coisas faz um grunho? Coloca o saquinho vazio do açúcar entre a chávena da bica e o pires (porque o asseio dos grunhos é mais objectivo que pessoal). No cozido à portuguesa, prefere aquelas partes do porco mais facilmente identificáveis. Os bifes são sempre comidos muito bem passados. Compra livros como O Erotismo no Cinema, revista como a Photo e L'Echo des Savane (BD com «gajas nuas») e julga que a literatura mundial atinge o grau máximo de complexidade filosófica com Milan Kundera."

Miguel Esteves Cardoso, in A Causa das Coisas

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